No Brasil, ocorre 1 estupro a cada 6 minutos. Especialistas esclarecem os principais mitos sobre este tipo de crime.
Por Letícia Martins, jornalista com foco em saúde
Apenas sete letras nomeiam um crime hediondo e recorrente no Brasil: o estupro. Em 2023, ocorreu um caso a cada seis minutos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Embora exista o Código Penal para punir os agressores e tenha aumentado o acesso à informação sobre o tema em comparação a 18 anos atrás, quando foi sancionada a Lei Maria da Penha, muitos mitos e inverdades relacionados ao estupro ainda persistem e se refletem, de certa forma, no alto número de ocorrências: 83.988 estupros somente no ano passado.
Imagem: 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2024
Esses mitos não apenas culpabilizam as vítimas, mas também perpetuam a cultura da violência sexual. “Durante o tempo que estive na coordenação de um serviço de aborto legal na Maternidade Escola Januário Cicco, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pude observar vários mitos que envolvem o estupro e estão enraizados no imaginário das pessoas, influenciando principalmente na forma de acolher a essas vítimas”, disse a ginecologista e obstetra Dra. Stenia dos Santos Lins, membro da Comissão Nacional Especializada (CNE) de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
A médica destaca que, diante de um estupro, há duas principais reações nocivas: culpabilizar a vítima e desconsiderar que o ato foi um estupro. Essas reações repercutem inclusive na busca dos serviços de saúde, pois a mulher vítima deste tipo de violência sente vergonha de buscar ajuda e opta por permanecer calada e em casa após violência sofrida.
As consequências do estupro são inúmeras, como transtornos psicológicos, depressão, ansiedade, infecções sexualmente transmissíveis, incluindo HIV, gravidez não desejada, aborto inseguro, entre outras. “Os mitos em torno do estupro representam um enorme risco à saúde pública, uma vez que mulheres e adolescentes recorrem a abortos inseguros por falta de informação ou por medo de sofrer violações de direitos ou revitimizações dentro dos serviços de saúde”, afirma a ginecologista.
Por isso, é fundamental derrubar os mitos e tabus que ainda existem em torno do assunto para que, em primeira instância, se possa dar apoio e assistência às vítimas de estupro e, de forma ideal, acabar com a violência sexual. Confira abaixo 7 afirmações absurdas sobre estupro que precisam ser combatidas:
1) “Foi ela quem provocou o estupro”.
A ideia de que a roupa ou o comportamento da mulher é um convite ou consentimento para violência sexual demonstra que a cultura do estupro ainda está enraizada na sociedade brasileira e transfere para a vítima a culpa pelo crime. “Ninguém questiona uma pessoa que foi assaltada sobre qual roupa estava vestindo ou por que estava fora de casa à noite”, argumenta a Dra. Stenia.
2) “Estupro só ocorre em ruas desertas ou terrenos baldios”.
Essa afirmativa é falsa, poismais da metade (52%) dos casos de estupros registrados no Brasil em 2023 ocorreram no interior da residência da vítima.
3) “A maioria dos casos de estupro é cometida por desconhecido”.
De acordo com o FBSP, 64% dos estupradores eram familiares da vítima e 22,4%, conhecidos.
4) “A mulher é uma vítima perfeita”.
Para a ginecologista Dra. Stenia, este mito reforça a construção social de gênero dentro de uma cultura patriarcal que desvaloriza a sexualidade e a autonomia da mulher, legitimando assim o estupro.
5) “O estupro só é concretizado com a penetração do pênis na mulher e a ejaculação.”
Não necessariamente. A Lei nº 12.015 de agosto de 2009, em seu Capítulo I, artigo 213, estabeleceu que o estupro pode acontecer de diversas formas, passando a não ser mais somente com a conjunção carnal (penetração do pênis na vagina), mas, com outras formas de atos libidinosos, que abrangem vítimas de ambos os sexos. Assim diz a lei: “o atentado violento ao pudor engloba atos libidinosos de diferentes níveis, inclusive os toques, os contatos voluptuosos e os beijos lascivos, consumando-se o delito com o contato físico entre o agressor e a vítima.”
6) “O aborto só pode ser feito se a mulher vítima de estupro registrar o boletim de ocorrência”.
A decisão de realizar o aborto em caso de violência sexual é restrita à mulher e ao médico, ou seja, não há necessidade de realizar boletim de ocorrência nem de comunicar qualquer informação à autoridade policial, exceto no caso de estupro de menores de 18 anos de idade. Mas é importante que a mulher registre o boletim de ocorrência para conhecimento das autoridades policiais e eventual identificação do(s) agressor(es).
Dr. Rosires de Andrade, presidente da CNE e Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo, destaca: “O abortamento é um direito da vítima de estupro, mas não é uma obrigação, ou seja, a mulher tem a opção de interromper a gravidez ou de levá-la adiante, permanecendo com a criança ou, eventualmente, entregando-a para adoção”.
7) “No Brasil, as mulheres podem mentir que foram vítimas de estupro para conseguir realizar o aborto”.
O direito ao aborto é garantido por lei no Brasil em casos de risco à vida da gestante, anencefalia do feto e gravidez resultante de estupro. “Em caso de estupro, o aborto deve ser oferecido por profissionais de saúde e resolvido em tempo hábil, se se assim for o desejo da vítima”, afirma a Dra. Stenia Lins.
No entanto, em alguns lugares, prevalece a ideia equivocada de que mulheres estariam mentindo sobre terem sido vítimas de estupro para realizarem o procedimento. “Essa percepção negativa impacta diretamente no acesso das mulheres ao aborto legal, levando-as a passar por inquéritos e expor suas histórias a diferentes profissionais de saúde que inadequadamente, em lugar de acolher a vítima, tentam buscar a veracidade do caso”, disse a ginecologista. Ela completa: “A objeção de consciência é um direito do profissional, mas não cabe ao médico ou à equipe de saúde fazer julgamento sobre a narrativa do estupro”. Portanto, a palavra da mulher deve ser o suficiente para o atendimento médico adequado em caso de estupro.
Para finalizar, a Dra. Stenia ressalta que a gravidez pode ser evitada se a mulher tomar a pílula de emergência até cinco dias após a violência sofrida. A pílula de emergência é dose única e pode ser encontrada em postos de saúde e/ ou farmácias.
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